#DesafioDas100 A triste cor do Inverno

#DesafioDas100  A dor que o Frio trás


  • "Eu nunca vou me esquecer daqueles olhos, e
    do quão ternos eles eram, ainda que o mundo
    não lhe retribuísse tamanha doçura.
    Ele estava sempre lá, no mesmo lugar; suas
    poucas coisinhas sempre organizadas,
    porque, como ele sempre dizia: 'não é porque
    não tenho quase nada, que meu quase tudo tem de
    ser desordenado'.
    E ele estava tão certo...
    Sempre que podia, eu parava para conversar com ele,
    saber como foi seu dia e me encantar com o brilho
    que as pequenas pérolas negras me presenteavam,
    a cada pequeno gesto de gentileza que ele retratava.
    Ainda que ele dissesse, todas as vezes que eu partia,
    que tudo ficaria bem, meu coração doía...
    Eu não queria deixá-lo. Nunca queria.
    Não queria que ele ficasse ali, naquele chão sujo,
    como se sua vida não tivesse importância. Porque tinha.
    Eu me importava, me importava muito! E doía na alma
    ter que dizer adeus, sem saber como ele ficaria, de fato,
    quando a noite caísse. Mais de uma vez ouvi histórias...
    Pessoas más surgiam quando as luzes se apagavam e faziam mal
    àqueles pobres seres, esquecidos pela sociedade. Mais de uma vez,
    chorei sozinha no caminho de casa, com medo de não encontrá-lo de novo,
    na manhã seguinte.... Mas sempre que eu voltava, lá estava ele,
    com seus olhinhos espremidos, com um sorriso enorme ao me ver.
    Ele foi a criatura mais adorável que conheci na vida...
    Quando o inverno chegou, meu medo dobrou.
    Eu sabia... Sabia que aquela era a pior época do ano,
    que muitos não conseguiam abrigo e que pereciam nas ruas frias.
    Temia por ele, por sua frágil existência, mas ele sempre dizia que ficaria bem...
    Eu o fiz prometer, naquele fim de tarde, que prenunciava a noite mais fria do ano,
    que me acompanharia até um abrigo. E ele veio. Eu o vi entrar e meu coração se acalmou.
    Ele ficaria bem, estava em segurança, ficaria aquecido e teria algo quente para comer. 
    Aquela fora a noite mais gelada do ano,
    com temperaturas abaixo de zero, a mais baixa já registrada
    na história, naquela época do ano.
    Tudo tingiu-se de branco, a fina camada de gelo
    seria linda, se não remetesse a um frio muito maior
    do que o proveniente pelo ar cortante.
    Na manhã seguinte...
    ...
    ....
    .....
    Eu não.. o encontrei na estação, como sempre.
    Também não o vi perto da cafeteria, como costumava ficar às vezes.
    Não o encontrei também na plataforma 11, nem na ala dos ônibus.
    Lembrei que o havia levado ao abrigo e de imediato, em acalmei.
    Segui com meu dia.
    No final do expediente, no entanto...
    Não o encontrei no lugar de sempre. Meu coração doeu.
    Rodei a estação, a ala interna do metrô e os arredores. Nada.
    Saí.
    Meus passos tremiam, enquanto eu rodava as redondezas...
    Talvez ele tenha voltado ao abrigo, dizia minha mente. Queria me apegar a isso.
    Corri ao abrigo, aflita, o peito dolorido. Pedi informações.
    'Oh querida, sinto muito, ele saiu pouco depois que você foi embora.
    Uma mãe com uma com uma criança pequena não podia ficar, pois só restava uma vaga.
    Ou ficava ela, ou a criança. Ele lhe deu seu lugar'.
    Meu coração parou... Porque sua humanidade havia, mais uma vez,
    ultrapassado todas barreiras existentes no consciente humano.
    Ele privara-se da segurança de um local aquecido, em prol do outro.
    Um ser iluminado...
    'Sabe para onde ele pode ter ido?' 
    'Disseram que o viram... Na praça, aqui em frente.'
    Congelei. Tudo em mim tremeu.
    Não pense o pior. Ele conseguiu abrigo, ele está bem.
    Corri à praça. Haviam tantos ali, meu Deus! Tantas almas boas, em sofrimento!
    Rodei toda a praça... Até que eu o encontrei, encolhido sob uma manta finíssima,
    ele parecia um tanto molhado, claro, havia geado durante o dia.
    'Ei! Acorde, sou eu. Estava preocupada.' toquei de leve seu ombro, para não assustá-lo.
    Rígido, muito quieto, mais pálido que o normal.
    'Ei, fala comigo! Estou começando a ficar assustada...'
    'Ôh moça, esse daí já foi, não adianta mais.' um homem enrolado num trapo disse,
    me assustando pela presença repentina.
    'Do que está falando?' 
    'Ele já foi, dona... Partiu. Morreu de frio.'


    Eu não saberia dizer o que doeu mais em minha alma,
    se foram as lágrimas, os gritos ou a imagem daquele
    pequeno ser, encolhido, duro, morto.
    As pequenas pérolas negras fechadas para sempre,
    o sorriso infantil e puro calado pela eternidade.
    Tão bom... Tão precioso... Não merecia esse fim!
    Não sei por quanto tempo chorei, porque eu só
    conseguia enxergá-lo sorrindo e brincando,
    enquanto dividíamos a companhia um do outro.
    Sua voz melodiosa e a mente tão esperta, as palavras,
    as histórias... Cada segundo se apagando, como num flash.
    'Ôh dona, fica triste não. Ele era bom, sabe?! Bom demais.
    Sempre aparecia aqui pra dividir o rango. 
    Dia ou outro, dividia também o dinheiro com quem não conseguia nada.
    E um dia, ele deu a manta dele pra outro, que tava doente.
    Ele era bom... Sempre dividia tudo... Agora, ele não precisa mais dividir no céu.'



    Na noite mais fria do ano,
    o ser mais gentil e doce que conheci,
    partiu desse mundo, regressou ao seu verdadeiro lar.
    Ele tinha os olhos mais lindos que já vi,
    bem como a alma mais bondosa e pura.
    Na noite mais fria do ano,
    mais do que uma vida se extinguiu,
    uma existência inteira, sonhos, planos, um futuro.
    Ele partiu, sob o manto frio da noite,
    mas antes de partir, salvara o futuro de outro pequeno ser.



    'Ôh dona, a senhora era a moça do café com cachecol?' perguntou o homem
    der repente e demorei a entender.
    'C-café com cachecol?' perguntei e ele concordou 'É, a dona que dava café pra ele todo dia
    e usava cachecol vermelhinho...'
    e quando entendi, concordei com a cabeça, atônita.
    'Ele ia dar isso pra senhora, acho, mas... não deu. Aqui óh!' e me entregou
    um pequeno papel amassado; algo escrito nele.


    'Obrigado por ter me enxergando,
    por não ter atravessado a rua e por 
    ter sido gentil. Obrigado por se importar.
    E não se preocupe... Eu vou ficar bem.'

















    Na noite mais fria do ano, o coração
    mais quente e terno apagou-se,
    mas deixou para trás, um pouco do seu calor,
    calor esse que carregarei comigo, por toda a vida.
    "







Y.
21:35h.
06/07/2019.

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