#DesafioDas100 Cataclismo

#DesafioDas100  Cataclismo



  • "A situação se tornou insustentável.
    Respirar o mesmo ar que ele tornou-se algo impraticável.
    A atmosfera densa tornava hábitos simples como
    comer e dormir, uma tarefa árdua e desgastante.
    Notava-se claramente a gradual degradação do
    nosso relacionamento, esse que com o passar dos dias,
    ganhava ares de fardo, e não de compartilhamento.
    Yoongi e eu mal nos víamos quando em casa; ele estava
    sempre na rua, trabalhando. Quando chegava - e digo isso
    porque, nos últimos dias, tornou-se constante seu hábito de
    simplesmente não voltar para casa, ao término do dia - se
    enfiava em seu estúdio e só saía de lá ao que o dia já
    estava quase amanhecendo.
    Muito mais que a destruição do nosso amor, passei a
    assistir a degradante corrosão de minha saúde,
    que ruía mais dia após dia, porque eu simplesmente não
    conseguia lidar com sua total falta de respeito e consideração.
    É óbvio que ele tinha sua vida privada! É claro que tinha
    coisas particulares a fazer e eu jamais invadi seu espaço!
    Mas, daí
    passar a agir comigo como se eu fosse um estorvo em seu
    caminho passou de incômodo a algo simplesmente inaceitável.
    Antes de amá-lo, eu devia amor a mim mesma.
    Sabia que uma decisão era necessária, mas não me sentia forte para tal.
    Até que... Tudo atingiu um patamar muito além das minhas compreensões.
    Era final de semana, o que presumia o início de um momento
    de descanso, após uma longa semana de trabalho.
    Já havia adiantado e enviado meus trabalhos de revisão para
    a editora na qual trabalhava, fazendo assim com que eu pudesse
    me dedicar a algo além das obrigações da vida adulta. Tinha
    passado no mercado no dia anterior e comprado uma boa peça
    de carne, com a intenção de fazer um bulgogi bem saboroso,
    a fim de tentar, de alguma forma, trazer de volta ao nosso lar
    aquele velho ar acolhedor, repleto de risos e carinho.
    Preparei o prato com todo o cuidado, tomando atenção para
    deixá-lo exatamente como eu sabia que Yoonie gostava e,
    com tudo feito, arrumei uma bela mesa para nosso jantar.
    Tomei um banho e coloquei uma roupa bonita e o esperei.
    E esperei. E esperei, e esperei, e esperei e... Esperei.
    E ele não chegou.
    Uma, duas, três, quase quatro horas se passaram.... A comida
    já estava fria, bem como as velas, quase consumidas em sua
    totalidade. A garrafa de soju que peguei para ele já se encontrava
    rodeada por uma pequena poça, bem como a Chilsung Cider que
    havia do lado oposto da mesa.
    O relógio de pêndulo badalou à meia-noite... Segundos depois, a
    porta se abriu vagarosamente, como se ele temesse fazer ruídos
    comprometedores. Sua postura era cuidadosa mas, quando me viu
    sentada à mesa, a sua espera, congelou.
    'O que está fazendo acordada a essa hora?' perguntou confuso, mas
    também haviam notas de irritação em seu timbre.
    'Talvez... Te esperando para jantar?!' perguntei com ironia.
    'Como eu ia saber...' bufou, entediado. Senti meu sangue ferver
    ante sua insensibilidade.
    'Talvez se se dignasse a pelo menos visualizar uma mísera mensagem,
    soubesse disso.' respondi, ácida, farta de tudo isso.
    'Eu estava ocupado...' respondeu baixo, dando de ombros.
    'Ah, claro. Ultimamente é tudo o que você tem pra dizer.
    Estava ocupado. Interessante como te convém fugir do que importa.' respondi,
    não contendo o desgosto em meus lábios.
    'O que quer dizer com isso?!' perguntou sarcástico.
    'Você sabe muito bem o que quero dizer e por favor, poupe o meu
    tempo e o seu, que parece ser preciosíssimo e apenas o seu valioso trabalho
    é digno de tal.' falei, levantando da mesa e levando as coisas de volta a cozinha.
    'Se você tem algo a falar, então diga logo e pare de drama.' teve a audácia de dizer.
    Até aquele momento, eu estava me controlando. Mas pra tudo há um limite.
    'Quer saber? Eu tenho sim algo a dizer. Eu estou cansada disso, cansada! Você
    quase nunca pra em casa, está sempre mal humorado, me destrata sempre
    que tento conversar com você e responde qualquer pergunta mínima com
    extrema rudeza, sem razão. Então eu te pergunto, Min Yoongi, que diabos
    eu fiz pra você me tratar desse jeito? Qual foi meu erro pra merecer ser tratada assim?'
    indaguei, exaltada. O vi revirar os olhos, enquanto bufava, como se
    estivesse exausto de me ouvir. E aquela foi a gota d'água. Não contive meus
    atos e descontei pelo menos parte da minha raiva no pobre copo de cristal,
    que se espatifou contra o chão, chamando sua atenção.
    'Mas que droga você está fazendo?' gritou.
    'Olha pra mim enquanto eu falo, inferno! Mas que ódio, Yoongi! O que
    há de errado com você? Porque está me tratando assim?' perguntei, quase histérica.
    'Eu não sei o do que você está falando, eu não tô fazendo nada incomum.' rebateu, alto.
    'Ah não?! Então chegar de madrugada em casa é normal? Distratar e responder com
    grosseria a sua companheira, aquela que te ama e só quer o teu bem é normal?
    Me diz, Yoongi, é normal você agir assim comigo sem razão? O que há
    de errado com você, afinal?' questionei, incisiva.
    'Eu não sei, droga! Eu não sei! Eu estou exausto, exausto!
    Você me sufoca, me deixa inquieto, sempre fazendo perguntas e querendo
    estar junto e não percebe que está me roubando o ar, a liberdade! Parece
    que não percebe que você está me fazendo mal...' falou, raivoso.
    Congelei. Era isso...
    Finalmente ele havia falado.
    Você está me fazendo mal. Você está me fazendo mal. Você está me fazendo mal. 
    Meu rosto deve ter se tornando uma das mais abstratas telas de Wassily Kandinsky,
    ou talvez, tenha se matizado de branco, porque tudo o que eu conseguia
    enxergar era dor e mágoa.
    O homem a minha frente permanecia me encarando, as íris escuras
    brilhavam, mas não de um jeito bonito, era zangado, cruel, corrosivo.
    Aqueles não eram os olhos do homem que eu tanto amava...
    Assimilar isso deu vasão a tempestuosa cascata salina que
    finalmente, teve a liberdade de jorrar por meus olhos.
    Um clique pareceu dar-se no cérebro do outro, ao que ele pareceu
    absorver o que havia dito.
    'Se é assim, então que seja. Eu não vou carregar o peso do teu fracasso. Acabou.' disse
    eu, com a voz quebrada, o timbre trêmulo demonstrou o quão partida eu
    realmente estava, me sentia.
    'O que quer dizer com isso.....?' tentou se aproximar, enquanto voltei a recolher
    a louça e jogá-la de qualquer jeito sob a bancada da cozinha.
    'Quer dizer que já deu. Acabou. Eu não aguento mais isso. Não aguento mais ser
    maltratada, culpada apenas por te amar e querer demonstrar isso. Não aguento
    o seu distanciamento e toda essa insensibilidade. Cansei.' desabei, indo em direção
    ao quarto. Precisava sair dali; agora era eu quem não conseguia respirar.
    'O que você vai fazer? Do que você está falando? Porque está agindo assim?'
    me seguiu, seu timbre era alto, áspero. Ele me viu arrumando
    minhas coisas e de relance, vi suas orbes arregalando-se.
    'O que você está fazendo? Pra onde você vai?' indagou, colérico.
    'Pra qualquer lugar longe de você.' falei baixo... Pela visão periférica, o vi
    congelado no lugar. Uma ficha irrefutável pareceu ter-se abatido sob ele.
    'Espera... Por favor, vamos conversar...' disse, muito mais manso.
    'Conversar? Jura que você quer conversar? Agora? E todas as vezes
    que te procurei? Ah é, eu estava te sufocando. Sendo assim, estou definitivamente
    devolvendo o seu oxigênio.' disse, ao finalmente terminar de arrumar uma
    pequena bolsa e atravessar a porta, passando por ele, que segurou meu braço.
    'Me solta.' sibilei baixo.
    'Por favor, não seja imatura. Vamos sentar e conversar, civilizadamente.' disse,
    quase como se falasse com uma criança.
    O encarei profundamente. Foram longos segundos olhando aqueles
    olhos escuros, sem encontrar neles, nenhum rastro da pessoa
    por quem me apaixonei e a quem entreguei o melhor de mim.
    Aquele, definitivamente, não era o homem que eu amava. 
    Aquele homem não existia mais.
    'Sabe, Yoongi, você sempre foi muito maduro, consciente. Nunca agiu por
    impulso ou de forma cruel. Sempre foi respeitoso e gentil. Mas, nas
    últimas semanas, você se tornou tudo o oposto de tudo isso e
    algo muito pior. Pisou no meu carinho e desmereceu o meu amor.
    Fez do meu coração gato e sapato e nem ao menos me deu
    o direito de réplica. Me culpou apenas por amar e
    apoiá-lo, e isso já diz muito sobre o que você sente.
    Mas o mais doloroso, é que eu sou muito idiota, e te amo demais,
    e te ouvir dizendo que eu ta faço mal quebrou algo aqui
    dentro que jamais imaginei atribuir-lhe a culpa. Mas vocês fez.
    E por ridiculamente ainda te amar tanto assim, não posso suportar ser a
    causadora do teu desassossego. É melhor acabar logo com o seu tormento.' falei,
    e me surpreendi com a seriedade e firmeza em minha voz.
    Yoongi tinha seus olhos triplicados em tamanho, a feição surpresa,
    a respiração entrecortada e quase pude ouvir o descompasso em seu peito.
    'O q-que quer dizer com isso....' tremeu ao fim da fala.
    'Acabou Min.' foi tudo o que proferi, até sentir o aperto em meu braço
    ceder até desaparecer. Segui firme, ainda que meu peito estivesse
    estraçalhado num emaranhado de penar e desolação.
    A meio caminho da porta, o timbre quase quebrado do moreno
    chamou-me àtenção, fazendo aquele velho coração retesar-se, ao
    passo que a feição retorcia-se numa careta de dor, que gerava
    quase um martírio físico.
    'Por favor, não vai...' sussurrou e a aquosidade era perceptível
    em sua tessitura. Naquele instante, eu quis ceder. Quis largar aquela
    mala e correr para seus braços, em busca do conforto e do acolhimento
    que só ele me proporcionava mas... Se eu o fizesse, o quanto mais sofreria?
    Seriam o que, um ou dois dias no céu, para depois voltar ao inferno? Não.
    Eu merecia mais, devia mais à mim mesma, ao meu coração.
    Ainda que eu amasse Min Yoongi de um jeito que jamais amei
    outro alguém, não podia deixá-lo machucar-me daquela forma
    e achar que isso era normal, que mesmo sofrendo, eu permaneceria
    ali, para quando ele julgasse conveniente.
    'Essa decisão não foi minha, foi sua.' repeti o tom.
    'Eu não escolhi isso. Não escolhi brigar com você, mas perece
    que você não entende o que estou passando... É muita pressão e...'
    'E eu não quero ser o fator extra a fazê-lo explodir.' completei, seguindo
    em frente, novamente.
    'Por favor, não faz isso... Não estrague o que temos....' implorou.
    Meu coração encolheu-se ainda mais, porque era um golpe muito, muito baixo
    culpar-me por algo que fora integral - ou majoritariamente - responsabilidade
    dele, ao não compartilhar comigo seus problemas, impedindo-me ajudar.
    'Não se preocupe, estou consertando as coisas.
    A partir de agora, você tem sua liberdade de volta...' disse, segura,
    ainda que estilhaçada interiormente.
    Mais um passo e outra súplica.
    'Por favor, amor....'
    'Não apele, Yoongi. Você nunca soube mentir.' proferi, quase
    implorando para que ele rebatesse, mas tudo o que houve
    em retorno foi o silêncio, cru e lacerante.
    Ali estava a resposta...
    Mais alguns passos e a porta já estava diante de mim.
    'Amor, por favor, espera, vamos conversar...' articulou.
    Respirei fundo, há poucos passos da liberdade, aquela
    a qual não me agradava, aquela a qual não me era buscada.
    A liberdade me chamou e eu atenderia, ainda que parte de mim,
    permanecesse encravada naquelas paredes e em cada mínimo
    detalhe daquele lugar.
    'O tempo acabou, Yoongi. Bem como o ar ao nosso redor.' e com isso,
    calcei meus sapatos, peguei a minha chave e saí de casa.
    Engraçado.... Eu sempre achei que seria ele a partir, e não o
    contrário, mas lá estava eu, aos prantos, a visão nublada e
    o peito trêmulo, seguindo para longe daquele a quem meu
    peito clamava, em devoção e dissabor.
    A cada passo para longe, mais profundamente fincava-se em mim,
    a certeza de que daquela catástrofe, não haveriam sobreviventes...
    O vento acalmou, a maré normalizou, a terra aquietou.
    Era isso.
    Acabou." 




Y.
28-29/07/2019.



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